quarta-feira, 25 de novembro de 2015


                                           O Mistério da Cruz

                    Entre o Sagrado e o Profano por Rubens Saraceni 

Conta uma lenda que esse gesto de cruzar o solo ou a si mesmo só foi adotado pelos cristãos quando um “padre” romano, atiçado pela curiosidade, perguntou a um serviçal de sua igreja o porquê de ele cruzar o solo antes de entrar nela para limpá-la... e o mesmo fazia ao sair dela. 

O serviçal, um negro já idoso que havia sido libertado pelo seu amo romano quando já não podia carregar os seus pesados sacos de pedras ornamentais, e que andava arqueado por causa de sua coluna vertebral ter se curvado de tanto peso que ele havia carregado desde jovem, ajoelhou-se, cruzou o solo diante dos pés do padre romano e falou: 

– Agora já posso contar-lhe o significado do sinal da cruz, amo padre! 

– Por que, só após cruzar o solo diante dos meus pés, você pode revelar-me o significado do sinal da cruz, meu negro velho? 

– É porque eu vou falar de um gesto sagrado, meu amo. 

Só após cruzarmos o solo diante de alguém e pedirmos licença ao seu lado sagrado, esse lado se abre para ouvir o que temos a dizer-lhe.

 – Se você não cruzar o solo diante dos meus pés o seu lado sagrado não fala com o meu? 

É isso, meu negro velho e cansado? 

– É isso sim, meu amo. 

Tudo o que falamos, falamos para o lado profano ou para o lado sagrado dos outros com quem conversamos! 

Como o senhor quer saber o significado do sinal da cruz usado por nós, os negros trazidos desde a África para trabalharmos como escravos aqui em Roma, e porque ele é um sinal sagrado, seu significado só pode ser revelado ao lado oculto e sagrado de seu espírito. 

Por isso eu cruzei o solo diante dos seus pés, pedi ao meu pai Obaluayê que abrisse uma passagem entre os lados ocultos e sagrados dos nossos espíritos, senão o senhor não entenderia o significado e a importância dos cruzamentos... e das passagens. 

O padre romano, ouvindo as palavras sensatas daquele preto, já velho e cansado de tanto carregar os fardos de pedras ornamentais com as quais eles, os romanos, enfeitavam as fachadas e os jardins de suas mansões, sentiu que não estava diante de uma pessoa comum, mas sim diante de um sábio amadurecido no tempo e no trabalho árduo de carregar fardos alheios. 

Então o padre romano convidou o preto, velho e cansado, a acompanhá-lo até sua sala particular localizada atrás da sacristia. 

Já dentro dela, o padre sentou-se na sua cadeira de encosto alto e confortável e indicou um banquinho de madeira para que aquele preto velho se sentasse e lhe contasse o significado do sinal da cruz. 

O velho negro, antes de sentar-se, cruzou o banquinho e isto também despertou a curiosidade do empertigado padre romano, sentado em sua cadeira mais parecida com um trono, de tão trabalhada que ela era. 

– Por que você cruzou esse banquinho antes de se assentar nele, meu preto velho? 

– Meu senhor, eu só tenho essa bengala para apoiar meu corpo arqueado de tanto carregar os fardos de pedras para os senhores romanos. 

Então, se vou sentar-me um pouco, eu cruzei esse banquinho e pedi licença ao meu pai Obaluayê para assentar-me no lado sagrado dele. 

Só assim o peso dos fardos que já carreguei não me incomodará e poderei falar mais à vontade, pois, se nos assentamos no lado sagrado das coisas, deixamos de sentir os “pesos” do lado profano de nossa vida. 

O padre romano, de uma inteligência e raciocínio incomum, mais uma vez viu que não estava diante de uma pessoa comum e sim diante de um sábio que, ainda que não falasse bem o latim (a língua falada pelos romanos daquele tempo), falava coisas que nem os mais sábios dos romanos conheciam. 

O velho preto, após assentar-se, apoiou a mão esquerda no cabo da sua bengala e com a direita estralou os dedos no ar por quatro vezes, em cruz, e aquilo intrigou o padre romano, que lhe perguntou: 

– Meu velho preto, porque você estralou os dedos quatro vezes, cruzando o ar?

 – Meu senhor, eu cruzei o ar pedindo ao meu pai Obaluayê que abrisse uma passagem nele para que minhas palavras cheguem até os seus ouvidos através do lado sagrado dele, senão elas não chegarão ao lado sagrado de seu espírito e não entenderás o real significado delas ao revelar-lhe um dos mistérios do meu pai. 

– Então tudo tem dois lados, meu preto velho, arqueado e cansado de tanto carregar os fardos de pedras alheias? 

– Tem sim, meu senhor. 

– Porque você, agora, já sentado e bem acomodado, fala mais baixo que antes, quando estava apoiado sobre sua bengala? 

– Meu senhor, quando nos assentamos no lado sagrado das coisas, aquietamos nosso espírito e só falamos em voz baixa para não incomodarmos o lado sagrado delas. 

– Entendo, meu velho. – murmurou o padre romano, curvando-se para melhor ouvir as palavras daquele preto velho. 

Conte-me o significado do sinal da cruz! 

E o preto velho começou a falar, falar e falar. 

E tanto falou sobre o mistério do cruzamento que aquele padre (que era o chefe da igreja de Roma naquele tempo, quando os papas ainda não eram chamados de papas) começou a entender o significado sagrado do sinal da cruz e começou a pensar em como adaptá-lo e aplicá-lo aos cristãos de então. 

Como era um mistério do povo daquele preto, já velho e cansado de tanto carregar fardos de pedras ornamentais alheias, então pôs sua mente arguta e agilíssima para raciocinar. 

E o padre romano pensou, pensou e pensou! 

E tanto pensou que criou a lenda dos três reis magos, onde um era negro, em homenagem ao sábio preto velho que, falando-lhe deste seu lado sagrado e interior, havia lhe aberto a existência do lado sagrado das coisas: o da existência de passagens entre esses dois lados etc. 

Enquanto ouvia e sua mente pensava, a cada revelação do preto, já velho e cansado, seus olhos enchiam-se de lágrimas e mais e mais ele se achegava, chegando um momento em que ele se assentou no solo à frente do preto velho para melhor ouvi-lo, pois não queria perder nenhuma das palavras dele. 

E aquele padre, que era o chefe de todos os padres romanos, diariamente ouvia por horas e horas o preto velho, cansado e curvado de tanto carregar fardos alheios. 

E depois que o dispensava, recolhia-se à sua biblioteca e começava a escrever os mistérios que lhe haviam sido revelados. 

Aos poucos estava reescrevendo o cristianismo e dando-lhe fundamentos sagrados. 

Ele escreveu a lenda dos três reis magos, onde um dos magos era um negro muito sábio. 

Ele mudou o formato da cruz em X onde Cristo havia sido crucificado e deu a ela a sua forma atual, que é uma coluna vertical e um travessão horizontal. 

Também determinou que em todos os túmulos cristãos deveria haver uma cruz, que é o sinal da passagem de um plano para o outro, segundo aquele preto velho. 

Ele criou a figura de Lázaro, cheio de chagas, para adaptar o orixá da varíola ao cristianismo. 

Na verdade, ele criou o sincretismo cristão, e dali em diante muitos outros “padres de todos os padres”, uma espécie de “cappo de tutti capos”, (os papas) começaram a adaptar os mistérios de muitos povos ao cristianismo, fundamentando a crença dos muitos seguidores de então da doutrina humanista criada por Jesus. 

E criaram concílios para oficializá-los e torná-los dogmas. 

Poderíamos falar de muitos dos mistérios alheios que os padres romanos adaptaram ao cristianismo. 

Mas agora vamos falar somente dos significados do mistério da cruz e dos cruzamentos, ensinados àquele padre por um preto velho. 

1º) O ato de fazer o sinal da cruz em si mesmo tem esses significados. 

a) Abre o nosso lado sagrado ou interior para, ao rezarmos, nos dirigirmos às divindades e a Deus através do lado sagrado ou interno da criação. 
Essa forma é a da oração silenciosa ou feita em voz baixa. 
Afinal, quando estamos no lado sagrado e interno dela, não precisamos gritar ou falar alto para sermos ouvidos. 
Só fala alto ou grita para se fazer ouvir quem se encontra do lado de fora ou profano da criação. 
Esses são os excluídos ou os que não conhecem os mistérios ocultos da criação e só sabem se dirigir a Deus de forma profana, aos gritos e clamores altíssimos. 

b) Ao fazermos o sinal da cruz diante das divindades, estamos abrindo o nosso lado sagrado para que não se percam as vibrações divinas que elas nos enviam quando nos aproximamos e ficamos diante delas em postura de respeito e reverência. 

c) Ao fazermos o sinal da cruz diante de uma situação perigosa ou de algo sobrenatural e terrível, estamos fechando as passagens de acesso ao nosso lado interior, evitando que eles entrem em nós e se instalem em nosso espírito e em nossa vida. 

d) Ao cruzarmos o ar, ou estamos abrindo uma passagem nele para que, através dela, o nosso lado sagrado envie suas vibrações ao lado sagrado da pessoa à nossa frente, ou ao local que estamos abençoando (cruzando). 

e) Ao cruzarmos o solo diante dos pés de alguém, estamos abrindo uma passagem para o lado sagrado dela. 

f) Ao cruzarmos uma pessoa, estamos abrindo uma passagem nela para que seu lado sagrado exteriorize-se diante dela e passe a protegê-la. 

g) Ao cruzarmos um objeto, estamos abrindo uma passagem para o interior oculto e sagrado dele para que ele, através desse lado, seja um portal sagrado que tanto absorverá vibrações negativas como irradiará vibrações positivas. 

h) Ao cruzarmos o solo de um santuário, estamos abrindo uma passagem para entrarmos nele através do seu lado sagrado e oculto, pois se entrarmos sem cruzá-lo na entrada estaremos entrando nele pelo seu lado profano e exterior. 

i) Ao cruzarmos algo (uma pessoa, o solo, o ar etc.) devemos dizer estas palavras: – Eu saúdo o seu alto, o seu embaixo, a sua direita e a sua esquerda e peço-lhe em nome do meu pai Obaluayê que abra o seu lado sagrado para mim. 

Outras coisas aquele ex-escravo dos romanos de então ensinou àquele padre de todos os padres, que era altivo e empertigado, mas que gostava de sentar-se no solo diante daquele sábio preto, já velho e muito cansado de tanto carregar os sacos de pedras ornamentais que enfeitavam muitas das mansões existentes na Roma daquele tempo. 

Era um tempo em que os políticos politiqueiros romanos estavam de olho no numeroso grupo de seguidores do cristianismo e se esmeravam em conceder aos seus bispos e pastores (digo padres) certas vantagens em troca dos votos deles que os elegeriam. 

Também era um tempo em que era moda aqueles bispos e pastores (digo padres) colocarem nos púlpitos pessoas que davam fortes testemunhos, ainda que falsos ou inventados na hora para enganar os trouxas já existentes naquele tempo em Roma, tanto na plebe como nas classes mais abastadas. 

E olhem que havia muitos patricinhos e patricinhas (digo, patrícios e patrícias) com grande peso na consciência que acreditavam no 171 (digo discursos) daqueles ávidos padres romanos, que lhes prometiam um lugar no paraíso assim que se convertessem ao cristianismo! 

Mas aqueles padres daquele tempo pensavam em tudo, e espalharam que quem fizesse grandes doações à igreja seria recompensado com uma ampla e luxuosa morada, um palacete mesmo, no céu e bem próximo, quase vizinho de onde Jesus vivia. 

A coisa estava indo bem, mas havia espaço para melhorar mais ainda a situação da igreja romana daqueles tempos, e alguns padres, versados no grego, se apossaram do termo “católico” que significava “universal” e universalizaram suas práticas de mercadores da fé. 

Como estavam se apossando de mistérios alheios, um atrás do outro, começaram a ser chamados de plagiadores, então fizeram um acordo com um imperador muito esperto, mas que estava com seus cofres desfalcados, à beira da bancarrota (digo, deposição), acordo esse que consistia em acabar com as outras religiões. 

No acordo, o imperador ficava com os bens delas (tesouros acumulados em séculos, propriedades agrárias e imóveis bem localizados) e os padres de então ficariam com todos os que se convertessem e começassem a pagar um dizimo estipulado por eles. 

O acordo era vantajoso para ambos os lados envolvidos e aqueles padres de então, para provar ao imperador suas boas intenções, até o elegeram chefe geral da quadrilha (digo, hierarquia), criada recentemente por eles, desde que editasse um decreto sacramentando a questão dos dízimos cobrados por eles. 

Outra exigência daqueles pastores (digo padres) de então foi a de estarem isentos na declaração dos bens das suas igrejas. 

Também exigiram primazia na concessão de arautos (as televisões de então), pois sabiam que estariam com uma vantagem imensa em relação aos seus concorrentes religiosos de então. 

O imperador começou a achar que o acordo não era tão vantajoso como havia parecido no começo, mas os pastores (digo, os padres) daquele época começaram a fazer a cabeça da esposa dele, que era uma tremenda de uma putana (digo, dama da alta sociedade) que estava se dando muito bem na sua nova religião, pois aqueles padres haviam criado um tal de confessionário que caíra como uma luva para ela e outras fornicadoras insaciáveis (digo, damas ilustres) que pecavam a semana toda, mas no domingo, logo cedo, iam se confessar com um padre que elas não viam o rosto, mas que era bem condescendente, pois as perdoava em troca de elas rezarem umas orações curtas, fáceis de serem decoradas. No domingo ajeitavam a consciência e na segunda, já perdoadas, voltavam com a corda todo às suas estripulias intramuros palacianos. 

O acordo foi selado e sacramentado e aí foi um salve-se quem puder no seio das outras religiões. 

E não foram poucos os que rapidinho renunciaram à antiga forma de professar suas fezes (digo, fé, no singular, mesmo!), pois viram como a grana corria à solta para as mãos (digo, cofres) daqueles padres de então, pois eles eram muito criativos e a cada dia tinham um culto específico para cada um dos males universais, comuns a todos os povos, épocas e pessoas. 

Aqueles pastores (digo, padres) de então estavam com tudo: a grana que arrecadavam, parte reinvestiam criando novos pontos de arrecadação (digo, novas igrejas) e parte usavam em benefício próprio, comprando mansões e carrões (digo, carruagens) que exibiam com ares de triunfo, alegando que era a sua conversão ao cristianismo que havia os tornado prósperos e bem-sucedidos na vida. 

Eles criaram uma tal de teologia da prosperidade para justificar seus enriquecimentos rápidos e à custa da exploração da ingenuidade dos seus seguidores de então, que lhes davam dízimos e mais dízimos e ainda sorriam felizes com suas novas fezes (digo, fé no singular). 

Tudo isso aconteceu no curto espaço de uns vinte e poucos anos, e começou depois da segunda metade do século IV d.C. 

Por incrível que pareça, aquele preto velho, muito cansado de tanto carregar sacos de pedras alheias, viveu tempo suficiente para ver tudo isso acontecer. 

E tudo o que aquele padre de todos os padres havia lhe dito que faria com o que tinha aprendido com ele teve destino contrário. 

O tal pastor (digo, padre), já autoeleito bispo, usou o que havia aprendido com o preto, mas segundo seus interesses de então (digo, daquela época). 

Batizava com uma caríssima água trazida direto do rio Jordão (mas que seus asseclas colhiam na calada da noite das torneiras da Sabesp... digo, das bicas da adutora pública). 

Vendiam um tal de óleo santo feito de azeitonas colhidas dos pés de oliva existentes no monte das oliveiras (mas um assecla foi visto vendendo a um “reciclador” barricas de um óleo que, de azeitonas, só tinha o cheiro). 

E isso, sem falar nas réplicas miniaturizadas da arca da aliança feita de papiro, nas réplicas das trombetas de Jericó, num tal de sal grosso vindo direto do mar morto, mas que algumas testemunhas ocultas juraram que era sal grosso de um fabricante de sal para churrasco. 

Foram tantas as coisas que aquele velho preto cansado e curvado havia ensinado àquele jovem e empertigado pastor (digo, padre) e que ele não só não usou em benefício dos outros como os usou em benefício próprio, que o preto já velho, muito velho, falou para si mesmo: 

– Me perdoa, meu pai Obaluayê, mas eu não revelei àquele padre (digo, pastor, isto é, àquele bispo) o que acontece com quem inverte os seus mistérios ou os usa em benefício próprio: que eles, ao desencarnarem, têm seus espíritos transformados em horrendas cobras negras! 

Obaluayê, ao ouvir o último lamento daquele preto, velho e curvado de tanto carregar sacos de pedras alheias e cansado e desiludido por ensinar o bem e ver seus ouvintes inverterem tudo o que ouviam em benefício próprio, acolheu em seus braços o espírito curvado dele, endireitou-o, acariciou-lhe o rosto e falou-lhe bem baixinho no ouvido:

 – Meu filho, alegre-se, pois ele só andará na terra o tempo necessário para tirar dos cultos dos orixás os que não aprenderam a curvar-se diante dos Senhores dos Mistérios, mas que se acham no direito de se servirem deles. 

Mas, assim que ele fizer isso, deixará essa terra e voltará a rastejar nas sombras das trevas mais profundas, que é de onde ele veio para recolher de volta para elas os espíritos que Jesus trouxe consigo após sua descida às trevas. 

Bem que eu alertei o jovem e amoroso Jesus sobre o perigo de usar do meu Mistério da Cruz para abrir passagens nas trevas humanas! 

Afinal, quem abre passagens nas trevas com meu mistério da cruz liberta o que nele existe, não é mesmo, meu velho e sábio preto? 

– É sim, meu divino pai Obaluayê! 

(Texto extraído do Livro “Lendas da Criação”, Ed. Madras, Rubens Saraceni)

116 - Linhas Auxiliares

110 - Você está preparado para qualquer Carrego no seu Terreiro?

Tira Dúvidas nº 46

Religião x Dinheiro

Sabemos que muitos se  embrenham nas Religiões, parcialmente ou unicamente visando o interesse financeiro. Nestes longos anos de aprendizado...