COMO CONHECI ZÉLIO DE MORAIS
"Para mim, ele, sem dúvida nenhuma, é o Pai da
Umbanda."
(Ronaldo Linhares)
Em julho de 1970, eu estava
numa das minhas viagens ao Rio de Janeiro, com fragmentos de uma informação que
havia colhido
de uma conversa com o Sr. Demétrios Domingues, segundo o qual a mais antiga Tenda de Umbanda seria a de Zélio de Morais. Eu
me encontrava em São João do Meriti-RJ, já de saída para São Paulo, quando decidi que procuraria essa pessoa e se é que ela
realmente ainda existia. Após me informar de como chegar a Cachoeiras de Macacu, atravessei a ponte Rio-Niterói e, tomando a
estrada para Friburgo, consegui chegar, depois de várias informações erradas.
de uma conversa com o Sr. Demétrios Domingues, segundo o qual a mais antiga Tenda de Umbanda seria a de Zélio de Morais. Eu
me encontrava em São João do Meriti-RJ, já de saída para São Paulo, quando decidi que procuraria essa pessoa e se é que ela
realmente ainda existia. Após me informar de como chegar a Cachoeiras de Macacu, atravessei a ponte Rio-Niterói e, tomando a
estrada para Friburgo, consegui chegar, depois de várias informações erradas.
Caída à tarde naquela cidade.
Era
dia de jogo do Brasil na copa do mundo, o que serviu para complicar meu
trabalho. Em todo local que pedia
informações,
todos estavam com olhos grudados na televisão. Meu carro, embora novo, tinha um mau contato
no rádio e a minha companheira
Norminha passou metade da viagem dando tapas
embaixo do painel, para ouvir o jogo.
Várias vezes ela me disse que aquilo era uma
loucura e que o melhor era voltarmos ao Rio de
Janeiro, mas eu estava determinado a esclarecer o assunto de uma vez por
todas. Ao
entrar na cidade, que é muito pequena, dirigi-me
primeiro a um bar, pedindo as primeiras informações, pois contava encontrar uma
pessoa muito popular na cidade. Fiquei muito surpreso com o fato de que
ninguém soube dar-me nenhuma informação, nem quanto
à figura de Zélio nem quanto à sua Tenda.
Essa pessoa que eu procurava, se ainda estivesse viva, devia ser um
ancião e, assim pensando, procurei uma farmácia, pois nessas pequenas
comunidades os velhos quase sempre freqüentam regularmente a farmácia. Nova decepção: ninguém conhecia Zélio e nem
havia ouvido falar de sua Tenda.
Cheguei a procurar a Igreja local e indaguei ao padre, apresentando as
minhas credenciais de repórter. Este
também declarou nada saber a respeito de quem eu procurava (mais tarde vim a
saber que a família Morais não era conhecida do padre, como participava
financeiramente das realizações sociais da igreja).
Já
quase desistindo, parei numa padaria, em uma das travessas da cidade, e foi lá
que encontrei o "louco".
Demo-lhe este nome porque durante a nossa conversa ele pareceu não ser
um indivíduo equilibrado. Afirmou
conhecer Zélio e disse-me que ele tinha um bar em Boca do Mato. Contestei imediatamente, pois as informações
que eu tinha diziam que Zélio morava em Cachoeiras.
Depois de muitas explicações, fiquei sabendo que Boca do Mato era um
bairro desse micromunicípio, com praticamente uma única rua que terminava na
mata, daí o nome que lhe deram: Boca do Mato.
Um tanto temeroso ainda, convidei o "louco" para que nos
levasse até o local.
Norminha estava apavorada com a minha atitude, achando que estávamos
sendo conduzidos a uma emboscada. O cair
da tarde era frio e garoava muito, lembrando uma tarde de inverno paulistano. A região serrana talvez propiciasse esse
clima. Ao voltarmos à estrada, o
"louco" apontava para a propriedade mais bonita e dizia: "Eu
vendi para o deputado, para o gerente do Banco do Brasil, etc". Se era fato ou não, o certo é que jamais
ficaremos sabendo. Finalmente uma curva na estrada, nenhuma casa aparente, ele
nos pede para entrarmos à direita. Só a
menos de dez metros da entrada é que eu consegui enxergar a saída.
O
receio transformou-se em medo. Apesar de
tudo, fomos em frente: uma rua sinuosa, várias pontes, algumas casas esparsas,
nenhuma casa de comércio aberta. Paramos
e ele disse: "É aqui!". A
casa estava fechada. Bati palmas várias
vezes;
numa casa vizinha uma janela se abriu e uma senhora
de meia-idade, muito atenciosa, perguntou: "Vocês estão procurando
quem?"
Mostrei-lhe as credenciais e expliquei tudo. "Sou repórter e preciso encontrar
Zélio". Ela então me esclarece:
"Seu Zélio está muitodoente e não há ninguém em casa".
Finalmente alguém confirmou que Sr. Zélio existia. Perguntei onde o encontrava e ela disse:
"Ele está na casa da filha, em Niterói". Senti como se tivesse pisado
num alçapão, pois havia passado por Niterói e levei duas horas para chegar até
ali. Teria de fazer todo o caminho de
volta. Perguntei se ela teria o
endereço. Ela, muito educada, respondeu:
"Não sei exatamente onde eles moram, mas tenho o telefone da filha".
Depois de assegurar-me de que realmente o apartamento ficava em Niterói,
despedi-me. O "louco" estava
eufórico, a informação era correta.
Paramos em Cachoeiras de Macacu e eu o gratifiquei. Ele agradeceu e saiu correndo com o dinheiro
em direção ao primeiro bar, "como um louco".
Voltei para Niterói.
Norminha
dizia que o louco era eu por continuar naquela busca inútil, mas me
acompanhava, apesar de tudo. Já não se falava
mais em futebol, somente se encontraríamos ou não o Sr. Zélio.
Chegamos em Niterói por volta das 19 horas. Assim que deixei estrada, cruzei algumas ruas
e cheguei a uma farmácia.
"Cariocamente", estacionei o carro na
calçada, desci, apresentei minhas credenciais e pedi para usar o telefone. Logo, em minha volta estava estabelecida a
confusão. "O senhor é repórter? Foi
crime? Onde foi? Quem morreu?" Tentando ignorar as perguntas, consegui
completar a ligação. Do outro lado da
linha uma voz de menina atendeu-me. Eu
disse apenas que era de São Paulo, que queria entrevistar o Sr. Zélio e que havia
sido informado de que ele se encontrava naquele telefone.
A
mocinha pediu-me que esperasse um instante.
Eu a ouvi transmitindo as informações que lhe dera. Outra voz no aparelho, desta vez a de uma
senhora; explico os objetivos da minha visita (em nenhum momento declinei meu
nome).
Ouço a pessoa com quem estou conversando dirigir-se a outra e explicar:
"Papai, há um senhor de São Paulo ao telefone, que veio
entrevistá-lo. O senhor pode
atendê-lo?" E, para minha surpresa, ouço lá no fundo uma voz cansada
responder:
"É Ronaldo, minha filha, que estou esperando há muito tempo. O homem que vai tornar o meu trabalho
conhecido em todo o mundo". Eu ouvia e não acreditava. Eu não havia dito a ninguém o meu nome e, no
entanto, ele sabia de tudo, como se estivesse informado. Pedi o endereço, trêmulo e emocionado. Não me saía da cabeça como ele sabia quem eu
era. Agradeci ao farmacêutico e saí
"pisando fundo".
Na
Avenida Almirante Ari Pereira, perguntei a um, a outro e, finalmente, estava
defronte ao prédio. Um tanto receoso,
encostei o veículo. Passam os andares e
finalmente o elevador para. Tive a
impressão de que meu coração havia parado também.
Descemos, na nossa frente havia duas
portas. Bati à porta da direita. Ela abriu-se.
Era a mocinha gentil que me atendera da primeira vez:
"Sr. Ronaldo?"
"Perfeitamente!"
"Um momentinho". A
porta da sala é a outra e Dona Zilméia vai atendê-lo.
O
espaço que separava uma porta da outra não ultrapassava três metros. Com quatro passos estava diante da outra, que
já começava a abrir-se. Diante de mim,
uma senhora sorriu muito educada e perguntou:
“O senhor Ronaldo?”
Confirmei e apresentei Norminha, minha esposa.
A
sala era um "L" e, no canto direito, um velhinho, usando pijama com
uma blusa de lã por cima, sorriu para mim.
O apartamento era modesto; havia um enorme aquário numa das pernas do
"L". Ao ver a frágil figura do
velhinho, veio-me à cabeça que aquele deveria ser, no mínimo, irmão gêmeo de
Chico Xavier, tal a sua semelhança física com o famoso médium kardecista.
Tomado de grande emoção, aproximei-me do senhor
Zélio. Ele sorriu e disse, brincando:
Pensei que você não chegaria a tempo.
Não
sei por que, mas aproximei-me, ajoelhei-me diante daquela figura simpática e
tomei-lhe a bênção. Ele tomou minhas mãos,
fez-me sentar ao seu lado e repreendeu a Norminha, dizendo-lhe:
Por
que você não queria vir para cá?
Quando consegui falar, disparei uma "rajada" de
perguntas. Eu estava totalmente abalado,
o homem parecia saber tudo sobre mim e procurava acalmar-me, dizendo:
Sei
perfeitamente o que você quer saber e não há motivo para que esteja tão
nervoso.
Sua
presença me acalmava. Dona Zilméia,
depois de conversar conosco por 15 minutos, explicou que era seu dia de tocar
os trabalhos e desculpou-se, dizendo que precisava sair. Pedi-lhe o endereço da Tenda e, depois de
tudo anotado, ela retirou-se e fiquei na companhia do senhor Zélio. Ele realmente tinha todas as respostas para
minhas perguntas e, na maior parte do tempo,antecipava-se a elas. Coisa que até hoje não consigo
compreender. Eu estava diante de alguém
como nunca havia visto antes.
Finalmente eu encontrara o "homem".
aízes do Ritual Umbandista:
Quando
Ronaldo Linhares efetuou os primeiros contatos com Zélio de Morais, indagou
sobre a origem do ritual umbandista e ele fez os seguintes esclarecimentos:
"O rito nasceu naturalmente, como conseqüência, principalmente, da
presença do índio e pela presença do elemento negro, não tanto pela presença
física do negro, mas sim pela presença do preto-velho incorporado, e, para ser
mais preciso, no mesmo dia e pela primeira vez houve a incorporação de Pai
Antonio, naquela que haveria de ser a primeira Tenda de Umbanda do Brasil.A Tenda
Nossa Senhora da Piedade.
Segundo relato de Zélio de Morais, o Caboclo das Sete Encruzilhadas
havia avisado que subiria para dar passagem a outra entidade que desejava se
manifestar. Assim se manifestou, no
corpo de Zélio de Morais, o espírito do velho ex-escravo, que
parecia demonstrar sentir-se pouco à vontade frente
a tanta gente e que, se recusando a permanecer na mesa em que se dera incorporação,
procurava passar despercebido, humilde, aparentando muita idade e o corpo
curvado, o que dava ao jovem Zélio um aspecto estranho, quase irreal. Essa entidade parecia tão pouco à vontade,
que logo despertou profundo sentimento de compaixão e de solidariedade entre os
presentes. Questionado então por que não
se sentava à mesa, com os demais irmãos encarnados, respondeu:
"Negro num senta não, meu sinhô.Negro fica aqui mesmo. Isso é coisa de sinhô branco i negro deve
arrespeitá."
Era
a primeira manifestação desse espírito iluminado, mas a morte não retoca seu
escolhido, mudando-o para o bem ou para o mal.
Não havia afastado desse injustiçado o medo que ele tantas vezes havia
sentido ante a prepotência do branco escravagista e, ante a insistência de seus
interlocutores, disse:
"Num carece preocupá não, negro fica nu toco, que é lugá di
negro."
Procurava, assim, demonstrar que se contentava em ocupar um lugar mais
singelo, para não melindrar nenhum dos presentes.
Indagado
sobre seu nome, disse que era "Tonho" e que era "PAI ANTONIO". Surgiu, assim, esta forma de chamar os pretos-velhos
de "PAI".
Ao
responder como havia sido sua morte, disse que havia ido à mata apanhar lenha,
sentiu alguma coisa estranha, sentou-se e nada mais se lembrava.
Sensibilizado com tanta humildade, alguém lhe perguntou respeitosamente:
"Vovô, o senhor tem saudade de alguma coisa que deixou ficar aqui na
terra?"
Este respondeu: "Minha cachimba, negro qué pito que deixou no toco.
Manda mureque buscá."
Grande espanto tomou conta dos presentes. Era a primeira vez que algum espírito pedia
alguma coisa de material, e a surpresa foi logo substituída pelo desejo de
atender ao pedido do velhinho. Mas
ninguém tinha um cachimbo para ceder-lhe.
Na reunião seguinte, muitos pensaram no pedido e uma porção de
cachimbos, dos mais diferentes tipos, apareceu nas mãos dos freqüentadores da
casa, incluindo-se alguns médiuns que haviam sido afastados de centros
espíritas kardecistas, justamente porque haviam permitido a incorporação de
índios, pobres ou pretos como aquele e que, solidários, buscavam na nova casa,
a Tenda Nossa Senhora da Piedade, a oportunidade que lhes fora negada em seus
centros de origem.
A
alegria do velhinho em poder pitar novamente o seu cachimbo logo seria repetida
quando os outros médiuns já mencionados também passaram livremente a permitir a
presença de seus caboclos, de seus pretos-velhos e demais entidades
consideradas não doutas pelos kardecistas de então,
pobres tolos preconceituosos que confundiam cultura com bondade.
Foi
dessa maneira que foi introduzido na "mesa" espírita o primeiro
rito. Outros lhe seguiram, como, por
exemplo, quando houve a informação de que os índios tinham o hábito de fumar e
que foram eles que primeiro descobriram as propriedades dessa planta que eles
enrolavam num enorme charuto, que era usado coletivamente por todos os
participantes de seus cultos religiosos,
sendo desta forma uma espécie de planta sagrada.
Desde que haja moderação e cautela, negar o pito ao preto-velho seria
hoje uma grande maldade. Entretanto,
deve-se sempre ter em mente que o seu uso deve ater-se somente ao rito e
evitar-se os abusos e as deturpações que testemunhamos
constantemente, não raras vezes, tocando as raias
do absurdo e do escândalo, para o desprestígio desta religião que nasceu sob o signo
da paz e do amor.
Atualmente,
sabe-se que o uso do fumo pelas entidades incorporadas tem o efeito purificador
quando elas atendem alguma pessoa com problemas espirituais. A fumaça age como um desagregador de maus
fluidos, atingindo o perispírito dos espíritos obsessores. Por extensão destes hábitos incorporados ao
terreiro, passou-se a oferecer doces às crianças incorporadas e, às vezes,a
promover festas infantis. Contudo, o que
é usual nestes casos, e naturalmente influindo desta ou daquela forma nas
demais maneiras de incorporação, sempre com o objetivo de tratar os
incorporantes (espíritos) como velhos e queridos amigos a quem recebemos com
grande satisfação.
Com
a "liberdade" trazida pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, as pessoas
afugentadas da elitizada mesa kardecista de
então passaram a freqüentar a nova religião. Uma boa parcela dessas pessoas era de raça
negra (no Rio de Janeiro). Isso fez com
que a Umbanda passasse a contar com uma boa parte de médiuns de raça negra, que
se sentiam muito à vontade pela
ausência de preconceitos.
Estes médiuns começaram a enriquecer o ritual umbandista e hoje muitos
rituais com o nome de Umbanda são praticados...
muitos nem são umbanda... são misturas desconexas
de ritos... mas quando encontramos um verdadeiro terreiro ou tenda de umbanda...
algo dentro de nós nos emociona... é como estivéssemos sentindo a presença de
Cristo e de N.Sra. na humildade dos pretos velhos; na simplicidade dos índios
caboclos em sua pureza mental e moral e no cheiro bom da
arruda...alecrim...alfazema
e guiné...
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