O ensino religioso nas escolas públicas, num Estado laico como o Brasil, é
legítimo?
Debora
Diniz -
Sim e não. Sim porque está previsto pela Constituição. E não quando se trata
da coerência com o pacto político. Chamo de coerência a harmonia com os outros
princípios constitucionais: da liberdade e do pluralismo religiosos e da
separação entre o Estado e as igrejas. Falsamente, se pressupõe que religião
seria um conteúdo necessário para a formação da
cidadania.
Istoé -
O pluralismo religioso é respeitado nas escolas públicas?
Debora
Diniz -
Não. A Lei de Diretrizes e Bases delega aos Estados o poder sobre a definição
dos conteúdos e quem são os professores habilitados. Isso não acontece com
nenhuma outra matriz disciplinar no País. A LDB diz que o ensino religioso não
pode ser proselitista. Apesar disso, legislações de vários Estados – como a do
Rio de Janeiro – afirmam que tem de ser confessional. Determinam que seja
católico, evangélico.
Istoé -
As escolas viraram igrejas?
Debora
Diniz -
As aulas de ensino religioso, obrigatórias nas escolas públicas, se
transformaram num espaço permeável ao proselitismo. Não é possível a oferta do
ensino religioso confessional sem ser proselitista. Se formos para o sentido
dicionarizado da palavra proselitismo, é professar um ato de fé. É a
catequização. O proselitismo é um direito das religiões. Mas isso pode ocorrer
na escola pública? A LDB diz que não.
Istoé -
É possível haver ensino religioso sem ser proselitista?
Debora
Diniz -
É. A resposta de São Paulo foi defini-lo como a história, a filosofia e a
sociologia das religiões.
Istoé -
São Paulo seria o melhor exemplo de ensino religioso no País?
Debora
Diniz -
No que diz respeito ao decreto estadual, segundo o qual o ensino não deve ser
confessional, sim. Mas se é o melhor exemplo na sala de aula, não temos
pesquisas no Brasil para afirmar isso. A LDB diz que a matrícula é facultativa.
Então, também devemos perguntar: o que a criança faz quando não está na aula de
religião?
Istoé -
O ensino religioso, da forma como está configurado, é uma ameaça à liberdade
religiosa?
Debora
Diniz -
É. Quanto mais confessional for a regulamentação dos Estados, quanto mais os
concursos públicos forem como o do Rio – em que o indivíduo tem de apresentar um
atestado da comunidade religiosa a que pertence e, caso mude de religião, perde
o concurso –, maior é a ameaça. A liberdade religiosa está ameaçada no País e a
justiça religiosa também.
Istoé -
Há uma tentativa de privilegiar uma ou outra religião?
Debora
Diniz -
Quase todos os Estados se apropriam do que aconteceu no Rio, nominando as
religiões dos professores. No Ceará, por exemplo, o professor tem de ter
formação em escolas teológicas. Mas religiões afro-brasileiras não têm a
composição de uma teologia formal. Essa exigência privilegia os católicos e os
protestantes.
Istoé -
Por que o MEC não define o conteúdo do ensino religioso?
Debora
Diniz -
Há uma falsa compreensão de que o fenômeno religioso é um saber para
iniciados, e não para especialistas laicos. Também há um equívoco sobre o que
define o pacto político num Estado laico. O fenômeno religioso não é anterior ao
fato político. Religião não pode ter um status que não se subordine ao acordo
constitucional e legislativo. Isso é verdade em algumas coisas, tanto que o
discurso do ódio não é autorizado. O debate sobre a criminalização da homofobia
causa tanto incômodo às comunidades religiosas porque resultará em restrição de
liberdade de expressão. Não se poderá dizer que ser gay é grave perversão, como
algumas fazem atualmente.
Istoé -
Os livros didáticos dizem...
Debora
Diniz -
Dizem porque há essa lacuna de regulação e de fiscalização. Há uma
subordinação do nosso pacto político ao fato religioso. O que é um equívoco.
Também há uma falsa presunção de que o saber religioso não possa ser revisado. O
MEC tem um painel em que todas as controvérsias científicas são avaliadas por
uma equipe que diz o que pode e o que não pode entrar nos livros didáticos. A
despeito de pequenas comunidades no campo da biologia dizerem que criacionismo é
uma teoria legítima sobre a origem do mundo, o filtro do MEC diz que
criacionismo não é ciência. Por que, então, o MEC não define o que pode entrar
nos livros de ensino religioso e os parâmetros
curriculares?
Istoé -
O que os livros didáticos de religião pregam?
Debora
Diniz -
Avaliamos 25 livros didáticos de editoras religiosas
e das que têm os maiores números de obras aprovadas pelo MEC para outras
disciplinas. Expressões e valores cristãos estão presentes em 65% deles.
Expressões da diversidade cultural e religiosa brasileira, como religiões
indígenas ou afro-brasileiras, não alcançam 5%. Muitas tratam questões como a
homofobia e a discriminação contra crianças deficientes de uma maneira que, se
fossem submetidas ao crivo do MEC, seriam reprovadas. A retórica sobre os
deficientes é a pior possível. A representação simbólica é de quem é curado,
alguém que é objeto da piedade, que deixa de ser leproso e de ser cego. É a do
cadeirante dizendo obrigado, num lugar de subalternidade.
Istoé -
A submissão ao sagrado é estimulada?
Debora
Diniz -
É uma submissão ao sagrado, à confessionalidade. Mas a confessionalidade não
se confunde com o sagrado. O sentido do sagrado pode ser explicado. No caso do
“Alcorão”, é possível explicar que a escrita tem relação com a história do
islamismo. Não precisamos de livros que violem o sagrado, que digam que Maria
não era virgem. Mas eles não precisam se submeter à confessionalidade, dizer que
há só uma verdade.
Istoé -
Há um estímulo ao preconceito e à intolerância nos livros?
Debora
Diniz -
Sem dúvida. Há a expressão da intolerância à diversidade – das pessoas com
deficiência, da diversidade sexual e religiosa, das minorias étnicas. Há,
também, uma certa ironia com as religiões
neopentecostais.
Istoé -
A ideia da supremacia moral dos que têm religião é defendida?
Debora
Diniz -
É. Há equívocos históricos e filosóficos, como a associação de Nietzsche
ao nazismo. As pessoas sem Deus são representadas como uma ameaça à própria
ideia do humanismo. É muito grave a representação dos ateus. Isso pode gerar
desconforto entre as crianças cujas famílias não professem nenhuma religião. Já
que, nos livros, elas estão representadas como aquelas que mataram Deus e
associadas simbolicamente a coisas terríveis, como o
nazismo.
Istoé -
As aulas facultativas podem se tornar uma armadilha?
Debora
Diniz -
Sem dúvida. A criança terá de explicar suas crenças, o que deveria ser
matéria de ética privada. Pior: ao sair da aula com um livro como esse, as
crianças talvez tenham de explicar por que não têm Deus.
Istoé -
Não há reflexões históricas sobre o significado das religiões?
Debora
Diniz -
Nenhuma. Há uma enorme dificuldade de nominar as comunidades indígenas como
possível religião. Elas possuem tradições e práticas religiosas ou magia. No
caso das afro-brasileiras, também se fala em tradição.
Istoé -
O que levou o Estado a proteger o ensino religioso na
Constituição?
Debora
Diniz -
Foi uma concessão a comunidades religiosas numa disputa sobre o lugar de Deus
e da religiosidade na Constituição. A religião foi mantida no que caracterizaria
a vida boa e a formação da cidadania. Isso é um equívoco. A religião pode ser
protegida pelo Estado, mas não no espaço de promoção da cidadania que é a
escola.
Istoé -
O ensino religioso está ganhando ou perdendo espaço no mundo?
Debora
Diniz -
Essa é uma controvérsia permanente. Nos Estados Unidos, um país bastante
religioso, não está na escola pública. Na França, o país mais laico do mundo,
também não. Exceto na região da Alsácia-Mosele. Na Bélgica e no Reino Unido
está. Esses países hoje enfrentam com muita delicadeza a islamização de suas
sociedades. Na Alemanha, grupos islâmicos já começaram a exigir o ensino de sua
religião nas escolas públicas.
Istoé -
Mas na França também há o outro lado, de proibirem vestimentas...
Debora
Diniz -
Esse é o paradoxo que a França enfrenta neste momento, sobre como respeitar o
modelo da neutralidade. A lei do país proíbe símbolos religiosos ostensivos nas
escolas públicas – cruz grande, solidéu, véu. O que o outro lado vai dizer? Que
isso viola um princípio fundamental, que é a expressão das crenças individuais
estar no próprio corpo.
Istoé -
Quais são os desafios do ensino religioso no Brasil?
Debora
Diniz -
São gigantescos e podem ser divididos em três esferas. Uma é a esfera legal.
O ensino religioso está sob contestação nos foros formais do Estado: no Supremo,
no MEC e no Ministério Público Federal. Além de a lei do Rio de Janeiro estar
sendo contestada no Supremo, há uma ação da Procuradoria-Geral da República
contra a concordata Brasil-Vaticano, assinada pelo presidente Lula em
2008.
Istoé -
E do que trata esta ação?
Debora
Diniz -
Um artigo da concordata prevê que o ensino religioso na escola pública seja,
necessariamente, católico e confessional. Isso é inconstitucional. Estamos
falando da estrutura da democracia. Segundo o ministro Celso de Mello, em toda a
história do Supremo, só tínhamos tido uma ação que tocava na questão da
laicidade do Estado. Isso foi nos anos 40. Agora, temos pelo menos duas. A
segunda esfera é como o ensino religioso pode ou não pode ser implementado. O
MEC precisa definir quem serão os professores, como serão habilitados e quais
conteúdos serão ensinados. A terceira esfera é a sala de aula, a garantia de que
vai ser um ensino facultativo e de que o proselitismo religioso será proibido.
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