quinta-feira, 23 de julho de 2015

                     O Pintassilgo e o Poço

                                                         por Rubem Alves

 


Um velho feiticeiro dizia a seu aprendiz que o segredo de sua arte estava em aprender a fazer o mundo parar. 
Tal conselho parece loucura, mas vira sabedoria quando nos damos conta de que nosso mundo foi petrificado pelo hábito.

Acostumamo-nos a fa­lar sobre o mundo de uma certa forma, pensamo-lo sempre dentro dos mesmos quadros, vemos tudo sem­pre da mesma  forma, e os sentimentos se embotam por sabermos que o que vai ser é igual àquilo que já foi. 

Mas, quando brin­ca­mos de faz de conta, é como se o nosso mundo repentinamente parasse à me­dida que a linguagem, o pensamen­to, os olhos e o sen­timento de outro fazem surgir um mundo novo à nossa frente. 

Foi isso que ocorreu às pobres rãs desta parábola, já contada em outros lugares, e que vou repetir:

“Num lugar não muito longe daqui ha­via um poço fundo e escuro onde, des­de tempos ime­moriais, uma socieda­de de rãs se esta­be­lecera. 

Tão fundo era o poço que nenhuma de­las jamais havia visitado o mundo de fora. 

Esta­vam convencidas de que o universo era do tamanho do seu buraco. 

Havia so­bejas evi­dências científicas para corro­borar esta teoria, e somente um louco, privado dos sentidos e da razão, afir­maria o contrário.

Aconteceu, entretanto, que um pintassilgo que voava por ali viu o poço, ficou curioso, e re­solveu investigar su­as profundezas. 

Qual não foi sua sur­presa ao descobrir as rãs! 

Mais per­ple­xas ficaram elas, pois aque­la estra­nha criatura de penas coloca­va em ques­tão todas as ver­dades já secular­mente sedimentadas e com­provadas em sua sociedade.

O pintassilgo morreu de dó. 

Como é que as rãs podiam viver presas em tal poço, sem ao menos a esperança de poder sair?  

Claro que a ideia de sair era absur­da para as rãs, pois, se o seu buraco era o universo, não pode­ria haver um “lá fora”. 

E o Pintassilgo se pôs a cantar furiosamente. 

Trinou a brisa suave, os campos verdes, as árvores copadas, os riachos cris­tali­nos, borboletas, flo­res, nuvens, estrelas... o que pôs em polvorosa a sociedade das rãs, que se dividiam. 

Algumas acreditaram e come­çaram a imaginar como seria lá fora. 

Ficaram mais alegres e até mesmo mais bonitas. 
Coa­xaram canções novas. 

As outras fecharam a cara. 

Afir­ma­ções não confirmadas pela experiência não deveriam ser merecedoras de crédito, elas alegavam. 

O Pintassilgo tinha de estar dizendo coisas sem sentido e mentiras.

E se puseram a fazer a crítica filo­sófica, sociológica e psicológica do seu discurso. 

A serviço de quem estaria ele? 

Das classes dominantes? 

Das classes do­minadas? 

Seu canto seria uma es­pécie de narcótico? 

O passarinho seria um louco? 

Um enganador? 

Quem sabe ele não passaria de uma alucinação coletiva? 

Dúvidas não havia de que o tal canto tinha criado muitos proble­mas. 

Tanto as rãs dominantes quanto as rãs dominadas (que secretamente pre­paravam uma revolução) não gosta­ram das ideias que o canto do pintassil­go estava colocando na cabeça do po­vão. 

Por ocasião da próxima visita, o pin­­tassilgo foi preso, acusado de enga­nador do povo, morto, empalhado, e as demais rãs proibidas, para sempre, de coaxar as canções que ele lhes ensi­nara...”

Texto extraído do livro “O que é religião?” (Editora Loyola – 2002)

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