sábado, 12 de setembro de 2015

             
         O Pintassilgo e o Poço



por rubem alves


Um velho feiticeiro dizia a seu apren­diz que o segredo de sua arte estava em aprender a fazer o mundo parar. Tal conselho parece loucura, mas vira sabedoria quando nos damos conta de que nosso mundo foi petrificado pelo hábito.



Acostumamo-nos a falar sobre o mundo de uma certa forma, pensamo-lo sempre dentro dos mesmos quadros, vemos tudo sempre da mesma  forma, e os sentimentos se embotam por sabermos que o que vai ser é igual àquilo que já foi. Mas, quando brincamos de faz de conta, é como se o nosso mundo repentinamente parasse à medida que a linguagem, o pensamento, os olhos e o sentimento de outro fazem surgir um mundo novo à nossa frente. Foi isso que ocorreu às pobres rãs desta parábola, já contada em outros lugares, e que vou repetir:



“Num lugar não muito longe daqui ha­via um poço fundo e escuro onde, des­de tempos ime­moriais, uma socieda­de de rãs se esta­be­lecera. Tão fundo era o poço que nenhuma de­las jamais havia visitado o mundo de fora. Esta­vam convencidas de que o universo era do tamanho do seu buraco. Havia so­bejas evi­dências científicas para corro­borar esta teoria e somente um louco, privado dos sentidos e da razão, afir­maria o contrário.



Aconteceu, entretanto, que um pintassilgo que voava por ali viu o poço, ficou curioso, e re­solveu investigar su­as profundezas. Qual não foi sua sur­presa ao descobrir as rãs! Mais per­ple­xas ficaram elas, pois aque­la estra­nha criatura de penas coloca­va em ques­tão todas as ver­dades já secular­mente sedimentadas e com­provadas em sua sociedade.



O pintassilgo morreu de dó. Como é que as rãs podiam viver presas em tal poço, sem ao menos a esperança de poder sair?  Claro que a idéia de sair era absur­da para as rãs pois, se o seu buraco era o universo, não pode­ria haver um “lá fora”. E o Pintassilgo se pôs a cantar furiosamente. Trinou a brisa suave, os campos verdes, as árvores copadas, os riachos cris­tali­nos, borboletas, flo­res, nuvens, estrelas... o que pôs em polvorosa a sociedade das rãs, que se dividiam. Algumas acreditaram e come­çaram a imaginar como seria lá fora. Ficaram mais alegres e até mesmo mais bonitas. Coa­xaram canções novas. As outras fecharam a cara. Afir­ma­ções não confirmadas pela experiência não deveriam ser merecedoras de crédito, elas alegavam. O Pintassilgo tinha de estar dizendo coisas sem sentido e mentiras.



E se puseram a fazer a crítica filo­sófica, sociológica e psicológica do seu discurso. A serviço de quem estaria ele? Das classes dominantes? Das classes do­minadas? Seu canto seria uma es­pécie de narcótico? O passarinho seria um louco? Um enganador? Quem sabe ele não passaria de uma alucinação coletiva? Dúvidas não havia de que o tal canto tinha criado muitos proble­mas. Tanto as rãs dominantes quanto as rãs dominadas (que secretamente pre­paravam uma revolução) não gosta­ram das idéias que o canto do pintassil­go estava colocando na cabeça do po­vão. Por ocasião da próxima visita o pin­­tassilgo foi preso, acusado de enga­nador do povo, morto, empalhado a as demais rãs proibidas, para sempre, de coaxar as canções que ele lhes ensi­nara...”



Texto extraído do livro “O que é religião?” (Editora Loyola – 2002)

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