UM ESTUDO SOBRE OS DRUIDAS
Prof. Dr. João Lupi
Departamento de Filosofia/ UFSC
Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo
Apesar de sabermos que desde o século XVI foram afirmadas mais fantasias do
que certezas acerca dos druidas, dispomos de poucos elementos para construir uma
imagem real desses sacerdotes e sábios, admirados por gregos e romanos e
venerados pelos celtas. Propomos fazer aqui uma rápida revisão de textos, tanto
clássicos como recentes, para estabelecer ao menos dois elementos iniciais de
interpretação: a organização dos druidas, e sua sabedoria no que toca ao
conhecimento da natureza.
O que hoje em dia se pode dizer sobre os druidas parece oscilar entre dois
extremos: ou o quase nada, ou o excessivo. Entre os dois ficam mais hipóteses e
interrogações do que conhecimentos válidos. O quase nada é constituído
por:
As poucas referências de escritores gregos e latinos, mormente o texto de
Júlio César no De Bello Gallico que mal enche uma página;
A perplexidade ou paradoxo de uma escrita ogâmica que existiu para não
revelar os ensinamentos dos druidas;
A estranheza que nos causa a afirmação de Estrabão de que todos os grupos
celtas tinham seus druidas, quando só sabemos da existência deles na Gália e nas
ilhas Britânicas.
Se a esse muito pouco se acrescentar a crítica às opiniões do conquistador
e dominador dos gauleses, então do texto de César fica mesmo quase nada. O
“excessivo” fica por conta de todas as idealizações que ingleses e franceses
fizeram acerca dos druidas desde o século XVI, à procura de antepassados nobres
e dignos que os colocassem a par com a civilização greco-romana – e com esse
ideal imaginaram sacerdotes ecológicos, sábios de mistérios fantásticos,
adivinhos quase profetas, conhecedores dos segredos da natureza, com poderes
para fazer poções mágicas; e estes exageros deram lugar a uma tão ampla
literatura sobre os druidas, com inúmeros livros imperdíveis que parece que mais
nada há a dizer.
Entre as interrogações que ficam pelo meio estão as narrativas dos monges
irlandeses, que tão depressa cortam informações acerca dos druidas (para não
ofender nem o cristianismo nem aqueles que ainda respeitavam as doutrinas
tradicionais) como destacam o lado anti-cristão dos druidas para justificar o
seu banimento.
Para resistir à tentação de não dizer nada – já que nada de novo parece que
se pode dizer – só temos três débeis motivos:
A pouca bibliografia em língua portuguesa sobre este tema;
A necessidade de fazer um panorama tanto quanto possível atualizado dos
conhecimentos disponíveis;
E a possibilidade de algum ponto de vista interessante que possa surgir ao
olhar este panorama – assim como uma linda paisagem, que pode ter sido admirada
por milhões de pessoas, mas que nem por isso afasta quem nunca a olhou, e vai lá
na esperança de descobrir o que os outros não perceberam.
Porém, mesmo os estudiosos mais atentos e criteriosos que investigaram os
druidas não escaparam à tentação de arriscar hipóteses e opiniões incertas, e
por isso não vamos eliminá-las facilmente: num caso como este uma observação
sugestiva e razoável vale como um estímulo para que outros a comprovem, ou a
descartem – e é o risco que vamos correr.
Comecemos por uma visão rápida dos testemunhos clássicos e demos a
prioridade aos gregos.
Diodoro Sículo (entre séc. I a.C./ séc. I d. C., em Histórias V, 28, 6 e V,
31, 2-5) diz que os druidas eram filósofos e teólogos de nível superior, que à
maneira dos pitagóricos acreditavam na reencarnação das almas, e que eram
curandeiros e adivinhos respeitados.
Estrabão, contemporâneo de Diodoro (Geografia IV, 4, 197, 4) cita os
bardos, de quem Diodoro também falou, os adivinhos e os druidas, e destes diz
que são fisiólogos (naturalistas) e mentores da filosofia ética.
Dion Crisóstomo (início do séc.II, nos Discursos 49) diz que os druidas se
ocupavam com todo tipo de sabedoria e que não só eram conselheiros dos reis como
em tudo os reis seguiam as suas normas e diretrizes.
Diógenes Laércio (séc.III d. C. , em Vidas e doutrinas dos filósofos
ilustres, I, 1 e 6) inclui os druidas entre os sábios das outras civilizações –
persas, babilônios, assírios, indianos e egípcios e deles diz que eram homens “
veneráveis (...) que expunham suas doutrinas por meio de enigmas, exortando os
homens a reverenciar os deuses, a abster-se totalmente de más ações e a ser
corajosos “ – mas compara-os neste ponto aos ginosofistas indianos (os sábios
nus, geralmente se supõe que fossem os brâmanes, mas podiam ser ioguis).
Entre os cristãos helenísticos falaram dos druidas:
Clemente de Alexandria (c.153-220, nos Stromata I, 15);
Hipólito (c. 170-236 na Refutação das heresias I, 22);
Orígenes (c.185-254 no Contra Celso I, 16);
E ainda Cirilo de Alexandria (c.380-444 no Contra Juliano IV, 133).
Hipólito e Clemente relacionam os druidas com as doutrinas pitagóricas e
com a adivinhação e magia; são muito venerados pelos celtas, diz Hipólito porque
sabem fazer certos cálculos com números e profetizar o futuro, e também praticam
rituais mágicos;
E Clemente (que era de Atenas) ao explicar como a filosofia grega teve sua
origem entre os povos de outras culturas (bárbaros) afirma: “ E assim a
filosofia, que é de qualidade tão elevada, floresceu na antiguidade entre os
bárbaros, iluminando as nações, antes de chegar à Grécia; sua fileira inicial
foi constituída pelos sábios egípcios, e pelos caldeus entre os assírios, e os
druidas dos gauleses, e os samaneus da Bactriana, e os filósofos dos celtas, e
os magos dos persas, que anunciaram o nascimento do Salvador, e chegaram à
Judéia guiados por uma estrela, e os ginosofistas indianos (...).“ Clemente
lembra ainda que Pitágoras teria estudado com os gálatas e com os
brâmanes.
Orígenes, que foi aluno de Clemente cita os druidas da Gália (toûs galatoôn
druidas) entre os povos antigos de elevada sabedoria, mas para criticar Celso
(um romano do séc.II d. C.) que estimava os druidas acima dos judeus; o mesmo
Orígenes no Comentário ao Livro de Ezequiel (apud. Ellis, 132) afirma que os
druidas da Bretanha veneravam um deus único antes da chegada do cristianismo e
que assim ensinavam o povo, e por isso os celtas estavam predispostos desde
antigamente a receber o batismo.
Quanto a Cirilo sua obra foi escrita por volta de 435 para refutar a
crítica do imperador Juliano aos cristãos (em Contra os Galileus) e a referência
aos druidas é apenas de passagem.
Entre as muitas observações que se podem fazer acerca destes escritos
gregos é preciso notar antes de mais que as coincidências entre eles, como as
listas de povos antigos de Clemente e de Diógenes, denotam a falta de
conhecimento direto dos druidas e a presença de uma ou mais fontes comuns, mais
antigas, que geralmente se crê sejam os escritos de Timagestes, e a História de
Possidônio de Apaméia (c. 135-50 a . C.) de que não restam senão fragmentos
esparsos; mas parece que Possidônio teria visitado a Gália, e que seu testemunho
era bem fundamentado.
A segunda observação é que no conjunto estas afirmações constituem um
acervo muito diminuto quando comparado com o imenso volume de obras em grego; no
entanto são significativas, pois são notáveis certas opiniões comuns: já é de
estranhar que os celtas sejam colocados a par com outros povos que criaram
civilizações tidas como muito mais elaboradas, que tiveram amplo uso da escrita,
impérios organizados, grandes cidades – como os indianos, assírios, e egípcios –
o que nos leva a uma dupla interrogação:
Os druidas são citados devido à importância dos celtas, ou os celtas é que
são citados pela fama dos seus druidas?
Mas os celtas não gozavam de tão boa reputação, portanto é mais provável
que eles é que sejam citados devido à importância dos druidas. Mais: mesmo que
todos eles falem do que ouviram dizer ou leram em Possidônio, Timagestes ou
outro autor anterior a eles, alguma fama dos druidas deve ter permanecido para
que não omitam a referência. Portanto colocá-los a par com os magos persas e os
brâmanes é um indicador válido do respeito que eles gozavam entre os
“civilizados”. Ressalte-se ainda a repetição da referência aos pitagóricos:
deveria ser voz comum, não tanto pela matemática celta, mas pela aura de
ocultismo e mistério que os rodeava.
Vejamos agora o que dizem os romanos.
Júlio César (c. 100-44 a.C.) é a referência dominante acerca dos celtas e
dos druidas (De Bello Gallico ou A Guerra da Gália VI 4, 13, 14, 16, 18, 21):
além de alguns dados sobre a religião – deuses, rituais, sacrifícios, moral –
oferece informações sobre a organização dos druidas e suas funções: a eleição de
um druidamor, a reunião anual na floresta dos Carnutos, a função sacerdotal ou
de presidência dos ritos, a de mestre da juventude, e a de juiz; fala também da
isenção do serviço de guerra, da aprendizagem de longos poemas, e da recusa em
colocar por escrito os seus ensinamentos; os druidas, diz César, são muito
interessados nas coisas do mundo físico: astronomia e natureza.
Seu contemporâneo Cícero (106-43 a . C. em Sobre a adivinhação I, 41, 90) é
o único que diz ter conhecido um druida: Divicíaco o Eduano, hóspede de seu
irmão; mas pouco nos conta das conversas que teve com ele: apenas que sendo um
bom conhecedor da natureza era o que os gregos chamam um fisiólogo, e que era
áugure ou adivinho.
Plínio (c.23-79; na História Natural XVI 249) refere-se à magia dos druidas
e aos conhecimentos deles sobre os céus e os astros e dá-nos uma descrição dos
rituais do corte do visco no carvalho – é ele que nos fala das vestes brancas
dos druidas neste ritual; Plínio estava interessado em saber e divulgar as
propriedades medicinais das plantas e animais e descreve ainda o uso que os
druidas faziam de outras ervas como selago, e samolo e explica detalhadamente os
misteriosos ovos de serpente (XXIV 103-104; XXIX 52) mas mostra evidente
desconfiança acerca da validade de tais usos e inclusive considera exagerado o
fascínio que a Bretanha tinha pela magia (Britannia attonita celebrat tantis
caerimoniis) parecia até que os bretões achavam que foi com os druidas que os
magos persas aprenderam (XXX 13).
Pompônio Mela (séc. I d.C. em De Situ Orbis ou Geografia III 2, 18-19)
considera que os druidas são grandes sábios e mestres que se dedicam ao estudo
dos céus e dos astros.
Seu contemporâneo Lucano (39-65 no poema Pharsalia I, 450-458) também se
refere aos conhecimentos de astronomia, mas tal como Suetônio (69-140 em
Claudius 25) reputa os rituais dos druidas desumanos e selvagens.
Tácito (c. 56-120 nos Anais 14,30) narra a cena das mulheres enfrentando as
legiões ao som das imprecações dos druidas que incitavam os celtas à batalha; e
conta a destruição dos vencidos, que entretanto se dedicavam a superstições
selvagens; ao falar das profecias dos druidas acerca do Império (Histórias IV
54) Tácito considera-as vãs superstições.
Os autores da História Augusta (século IV) Lamprídio (no capítulo de
Alexandre Severo 59, 5) e Vopiscus nos capítulos sobre Numeriano 14, e Aureliano
43) citam a existência de mulheres druidas (mulier Dryas, dryde mulier) das
quais se contavam profecias.
Ausonio (c. 310-395 em Commen. Professorum IV 7-10 e X 22-30) cita Febício,
um homem “ da estirpe “ dos druidas, natural da Armórica (Bretanha francesa)
guarda do templo de Beleno, que foi professor em Bordéus.
Amiano Marcelino (c. 330-400 em O Final do Império Romano XV 9) distingue
os druidas (drasidae) dos adivinhos-profetas (euhagis) e dos bardos considerando
os druidas como grandes intelectuais (ingeniis celsiores) aproxima-os dos
pitagóricos e diz que se dedicam ao estudo das coisas mais sublimes e ocultas
desprezando as coisas humanas comuns.
Após analisar detidamente os testemunhos dos romanos e de relacioná-los com
o contexto histórico Kendrick (o. c. 98-99) é taxativo:
Até à época do Império os druidas gozavam de excelente reputação mas
rapidamente a perderam, e aos olhos dos romanos eles se foram convertendo cada
vez mais numa classe religiosa dedicada a superstições e feitiçarias.
Mas Ellis (o. c. 60-61, 74, e 77) tem outra opinião: ele julga quase todos
os escritores, tanto romanos como gregos (particularmente Estrabão) do tempo do
Império favoráveis à política de ocupação e domínio, e suas críticas aos druidas
seriam devidas mais à intenção de justificativa da conquista do que ao
desprestígio dos druidas.
Mesmo assim, por mais que se deva relativizar os conhecimentos que os
romanos tinham dos druidas há aspectos em que há uma tal coincidência, ou
reforço de opiniões vindas de diversos lugares e épocas, que a margem de dúvidas
se estreita; resumindo:
Os druidas eram intelectuais de alto valor, equiparáveis aos sábios de
outros povos mais eruditos; seus conhecimentos mais ocultos tinham semelhanças
com os dos pitagóricos; tinham especial sabedoria acerca da natureza em geral
tanto da astronomia e cosmologia como dos reinos animal e vegetal; e exerciam
funções jurídicas, e políticas além das pedagógicas.
Parece pois que, aos olhos dos intelectuais seus contemporâneos podemos
considerar os druidas como uma classe sacerdotal sociologicamente bem definida e
com características ou traços que desenham um certo tipo ideal que pode ao menos
ser tomado como ponto de partida razoavelmente seguro. Porém ao menos num
aspecto os comentadores têm sérias dúvidas acerca da opinião clássica sobre os
druidas: é no que toca a considerá-los “filósofos”. Vamos pois analisar os
druidas apenas sob estas duas categorias: como classe social, e como
fisiólogos.
Na organização social Estrabão diz (Geografia IV 4, 197-198), que todos os
celtas têm três classes de homens que são especialmente venerados: bardos
(bardoi), adivinhos (uáteis, vates) e druidas (druidai).
É a única afirmação disponível que estabelece a classe social dos druidas
como própria de todos os celtas, pois os testemunhos da época só nos falam dos
druidas dos gauleses – por vezes chamados de gálatas;
Das ilhas só sabemos da existência dos druidas por documentos posteriores
ao seu declínio ou desaparecimento, e de todos os outros celtas nada sabemos; as
fontes de informação – arqueologia, filologia, cultura popular, toponímia, e
epigrafia –não oferecem muitos dados que esclareçam o que nos chegou dos textos
apresentados, e os escritos do período cristão devem ser sujeitos a cuidadosa
crítica; contudo diversos autores consideram a opinião de Estrabão verosímil
(MCCANA 14 e 19; GUYONVARC’H 147; mas HUBY 604 discorda).
A reconstituição da organização e saber dos druidas opera pois sobre bases
frágeis:
Os relatos gregos e romanos;
Completados com as informações dos monges britânicos e irlandeses;
E a verosimilhança do alargamento de suposições dentro do quadro cultural
geral ou de cada grupo celta.
Podemos assim desenhar a estrutura básica da organização dos druidas como
uma classe coesa, liderada por um druida principal, havendo regras para a sua
eleição; tal procedimento supõe que os druidas da Gália mantinham entre si um
estreito relacionamento, que havia algum tipo de normas de comportamento e de
continuidade de doutrina que os unia, e que esse relacionamento se fortalecia a
quando da reunião anual na floresta dos Carnutos, onde realizavam um conclave
(reunião privada e exclusiva).
Há indícios, mas não a certeza, de que também na Irlanda existia um
druida-mor – em A Vida Tripartida de São Patrício (II, 325, citado por
JUBAINVILLE 79-80) fala-se de um chefe druida irlandês, mas pode ser um cargo
eventual, ou uma citação espúria, sem confirmação.
Acerca da vida privada dos druidas parece não haver dúvidas de que podiam
casar, ter propriedades e manter atividades políticas; embora isentos do serviço
militar acompanhavam os guerreiros e incitavam-nos à luta.
Mais discutida é a distribuição das três ordens, que segundo Estrabão eram
exercidas por grupos distintos, mas outras fontes consideram que constituíam uma
só ordem – a druídica – com funções distintas: a sacerdotal, a poética, e a
divinatória. A favor desta opinião estão os testemunhos de que os druidas
exerciam a profecia e a adivinhação, e que eram poetas compositores,
declamadores e músicos.
Segundo esta hipótese a especialização e autonomia dos bardos e adivinhos
teria se originado do progressivo declínio do reconhecimento social e do poder
dos druidas; mesmo que se tenha em conta os reparos de Ellis o declínio se deu
em virtude dos decretos imperiais:
Primeiro o de Augusto que os excluiu da cidadania romana;
Depois o decreto senatorial do tempo de Tibério que proibiu a sua
existência;
E finalmente o de Cláudio em 54 que aboliu por completo os druidas.
O que estranha é que três decretos sucessivos em pouco mais de cinquenta
anos não impediram que três séculos depois ainda se falasse deles (Ausonio,
Amiano Marcelino, e Cirilo de Alexandria) como de uma classe social e religiosa
importante e respeitável.
Porém é evidente que cada escritor, grego ou romano, dá uma opinião diversa
sobre as três ordens, suas funções e seu relacionamento; esta confusão pode
provir da variedade de fontes, das diferenças de tempo e de lugar, ou do próprio
autor que distorceu informações.
Por essa razão os comentadores e intérpretes contemporâneos apresentam cada
um uma distribuição diferente das três ordens, e Jubainville (o. c. 19-25) ainda
indica outra: a divisão em druidas, gutuatri, e uati (adivinhos); os gutuatri
estão atestados por alguns testemunhos, mas como ordem são pouco conhecidos. Do
que não restam dúvidas é de que as três funções existiam, que ao menos em certas
circunstâncias foram exercidas por personagens distintos, e que os druidas eram
considerados muito superiores aos bardos e aos adivinhos.
A evolução dos filidh na Irlanda parece confirmar esta hipótese: eles
teriam surgido no seio da classe social dos druidas, foram ganhando importância
como poetas e sábios – em letras e literatura – ao ponto de alguns deles já se
equipararem aos druidas no início do período cristão, e tornaram-se seus
herdeiros quando ingressaram nas fileiras do cristianismo e dos mosteiros. A
sabedoria dos druidas era, como se viu, famosa entre gregos e romanos:
Sacerdotes e teólogos, eram ainda fisiólogos e cosmólogos, poetas e
adivinhos;
Políticos e pedagogos. Que eram sacerdotes encarregados de presidir os
sacrifícios e o ritual, e portanto detentores dos conhecimentos acerca do
simbolismo litúrgico;
Não há dúvida; como também não se duvida de que eram teólogos, criadores e
intérpretes das doutrinas acerca da mitologia, das características dos deuses,
das formas de prestar-lhes culto, de como as pessoas deviam comportar-se de
acordo com normas éticas baseadas em princípios religiosos;
Também se reconhece geralmente que detinham habilidades no uso da linguagem
como poetas e narradores, o que implicava a música, e certamente o domínio,
entre os irlandeses, da escrita ogâmica, e a acreditar César, o uso do alfabeto
grego entre os gauleses;
É certo que conheciam as leis e os princípios de aplicá-las como juristas,
juízes e conselheiros políticos. Estas são qualificações que, com as reservas e
detalhes de tempo e lugar, se aplicam aos dois grupos de druidas que
razoavelmente se conhecem: gauleses e irlandeses, e, com menos certeza porque
são muito menos conhecidos, aos outros celtas: bretões, cruthin (pictos) e
galeses.
Mas acerca das demais atribuições de sabedoria há sérias dúvidas. A
primeira é sobre os conhecimentos matemáticos, que os aproximariam dos
pitagóricos e fariam deles hábeis astrônomos. Porém os pitagóricos como escola
autônoma na Grande Grécia desapareceram no século IV a . C. e não há indícios de
que antes ou depois tivessem se difundido muito para o norte.
O nome “ pitagórico “ significou muito mais um estudioso das ciências
ocultas do que um teórico da matemática; ora o que seja “ oculto “ é muito
relativo e não é raro chamar-se “ciência oculta “ aquela da qual não sabemos
nada porque não temos acesso a ela.
Gregos e romanos pouco podiam saber dos conhecimentos dos druidas porque
estes não os escreviam – de acordo com César, mas há reparos a fazer neste ponto
– nem os revelavam fora do seu grupo étnico. Contentavam-se com ensinar ao povo
os comportamentos religiosos e morais, e aos políticos as diretrizes de governo
e a sua aplicação prática. Outros saberes que detinham não revelavam, e esse
conjunto de sabedoria impressionava gregos e romanos que os comparavam ao que de
mais semelhante tinham conhecido: os pitagóricos.
Não há indícios de que os druidas dominassem algum tipo de ciência
matemática numérica aplicável à astronomia; o calendário dito de Coligny , no
entender de Kendrick (o. c.115-120) e também de A. H. Allcroft e Lewis Spencer
(citados por Ellis 273-274) não passa muito além dos conhecimentos de alguns
povos ágrafos acerca do ciclo do sol e da lua e é muito mais romano do que
celta; contudo Mac Cana o. c. 90 legenda 2) considera que “seu conteúdo é
claramente independente do calendário romano “.
Contudo Ellis, que se apoia mais no estudo dos druidas insulares do que no
dos druidas do continente, rebate estas reticências com alguns argumentos; o
primeiro seria o fato de ter havido entre as populações de cultura megalítica
anteriores aos celtas um conhecimento muito apurado dos ciclos solares e
lunares, que está presente nos monumentos do tipo Stonehenge, e que os celtas
teriam herdado – esta opinião teria forte respaldo nas hipóteses acerca da
difusão da cultura celta, que concedem muito mais importância à herança
préhistórica dos celtas (com esta opinião concordam também MACCANA 64) ao ponto
de ter havido quem defendesse a tese de que o druidismo é uma religião
précéltica (Pokorny , em 1908, cit. HUBY, 611 n.13; ao que GUYONVARC’H 67
contesta negando terminantemente). Brendan Lehane (1993, 195) diz: algumas
particularidades da sabedoria irlandesa vêm do druidismo e têm suas raízes na
religião megalítica, e na Europa
Ocidental a Irlanda é “a única região que pode dizer que aprendeu com
ela”.
Outro argumento é o estudo da terminologia goidélica; de fato, no
vocabulário gaulês e galês, não restaram nomes nativos referentes aos astros, o
que deveria ter acontecido se a sua astronomia fosse muito desenvolvida – mas
esses celtas foram muito romanizados, o que explicaria a perda da terminologia
própria; mesmo no irlandês moderno não há vestígios de conhecimentos próprios
que deixassem marcas no vocabulário; por exemplo: astrologia diz-se
astralaíocht, zodíaco é stoidíaca, eclipse é éiclips, Saturno é chamado Sathurn,
etc.
Ellis (o. c. 275-280) segue porém um caminho engenhoso: procurando no
vocabulário manês (ilha de Man, entre a Irlanda e Gales) e escocês encontrou
termos nativos, não romanizados e procurando no irlandês termos semelhantes
trouxe à tona um vocabulário no qual, apesar da mudança de significados, se
reconhecia a existência de uma antiga terminologia druídica acerca da
astronomia.
Por outro lado, se não há indícios de conhecimentos matemáticos elaborados
e numéricos encontram-se jogos tradicionais (Ellis o.c. 270-271) galeses e
irlandeses que implicam um saber matemático complexo a que poderíamos chamar de
“ percepção intuitiva de conjuntos “ que explicaria a capacidade de compreender
e analisar ordenamentos complexos como os do zodíaco.
Há ainda outro argumento a favor da astronomia druídica que é a existência
de astrônomos irlandeses atuantes na Europa continental nos séculos VIII e IX e
que faziam uso, ao que parece, de conhecimentos herdados dos druidas.
Entre eles conhecemos Fergal, monge irlandês, que foi bispo-abade de
Salzburgo com o nome de Virgílio, e cujos escritos sobre astronomia e
cosmografia foram reportados ao Papa Zacarias (741-752) por um escandalizado
Bonifácio de Crediton; Fergal, que tinha a seu lado outro bispo irlandês de nome
Dubdachrich, também astrônomo, defendia entre outras coisas inauditas a
existência de um mundo subterrâneo habitado semelhante ao sublunar – crença
característica dos druidas;
outro astrônomo irlandês foi Dungal de Bangor que em 810 explicou os
eclipses a Carlos Magno;
E ainda Diciul que em 825 escreveu um tratado de geografia notável, e outro
de astronomia – A Medição do Orbe Terrestre – do qual existe cópia na Biblioteca
de Valenciennes, na França (o tratado foi publicado em 1907 e até hoje é quase
desconhecido - cf. ELLIS o. c. 282-283).
Esta argumentação, por mais convincente que seja acerca de indícios do
saber dos druidas sobre astronomia, não nos explica o que é que de fato os
druidas sabiam como astrônomos, e continuamos supondo que de matemática não
tinham conhecimentos avançados nem muito menos do tipo pitagórico.
Um último dado para não relacionarmos druidas e pitagóricos vem de um ponto
supostamente comum entre as suas doutrinas, que seria a metempsicose, ou
transmigração das almas; esta hipótese não tem apoio nos ritos funerários
celtas, que faziam o cadáver, ou a urna de cinzas, ser acompanhado de utensílios
que lhes servissem na outra vida; ora quem crê que leva objetos não espera
incarnar noutro corpo, mas permanecer em algum lugar do outro mundo.
Aliás a crença na reencarnação, em diversas modalidades, é muito comum em
vários povos muito distantes dos pitagóricos; e embora seja certo que em lendas
irlandesas há relatos de renascimentos eles não se comparam a nenhuma idéia
geral de transmigração (cf. KENDRICK o.c. 110-113 com o que concorda ELLIS o. c.
199-210 e também JUBAINVILLE o. c. 97, 103, e 106 e MACCANA 122).
Mas fica ainda a conotação de filósofos que, como vimos, era atribuída aos
druidas pelos gregos (Diodoro, Estrabão, Clemente) e de modo menos explícito
também pelos romanos. Ora a designação de filósofo não tinha na antiguidade a
mesma qualificação que pode ter atualmente:
Por filósofo entendia-se ou um indivíduo que levava uma vida filosófica
isto é, desapegada das coisas comuns, austera, sábia no sentido de saber se
comportar com dignidade, numa espécie de aristocracia espiritual e
intelectual;
Ou uma pessoa que se interessasse pelo saber como um todo, pela sofia; nem
num caso nem no outro implicava necessariamente a filiação do filósofo a uma
escola de filosofia (estóicos, platônicos, aristotélicos etc) nem sequer que
fosse um profissional que conhecesse a fundo as doutrinas dos filósofos das
escolas.
Esta é geralmente a opinião dos comentaristas e intérpretes contemporâneos,
que não consideram os druidas como filósofos na acepção comum do termo (por ex.:
GUYONVARC’H o. c. 112-113 e 146). O que os gregos e romanos queriam dizer quando
chamavam os druidas de filósofos era provavelmente o que deles disse Kendrick
(ib):
“Este é o verdadeiro segredo do antigo respeito que o mundo clássico
mostrou pelos druidas: que a sua reputação não repousava na sua doutrina
religiosa, nem na filosofia ou sabedoria, mas na habilidade em controlar a mente
popular pela ação coletiva e coordenada como um corpo de pedagogos” o que lembra
a frase de Diodoro Sículo (o. c.) “ os druidas mantêm todo o povo submetido a
eles” e explica a seguir: porque o povo crê que “ eles sabem a língua dos
deuses” ou seja: eles se tornaram indispensáveis para manter o bom
relacionamento entre os homens e os deuses, e com isso a ordem do mundo.
De um pequeno ensaio como este, baseado em fontes bibliográficas e
comentários, não se podem tirar muitas conclusões, nem esperar uma descoberta
significativa, mas apenas algumas diretrizes para trabalhos mais
específicos.
A primeira é a necessidade de separar claramente o estudo dos druidas
gauleses do estudo dos druidas irlandeses: enquanto dos primeiros temos
sobretudo notícias através de gregos e romanos, dos celtas das ilhas e seus
druidas temos a abundante literatura
irlandesa que nos foi conservada pelos primeiros séculos cristãos, e de
cujo estudo há certamente ainda muito a esperar.
Por outro lado, enquanto na Gália os decretos imperiais rapidamente tiraram
os druidas de cena, na Irlanda não-romana os decretos não tiveram efeito e o
cristianismo foi mais tolerante permitindo a sobrevivência dos druidas – embora
um tanto escondidos, mas nem sempre.
As fontes de informação sobre uns e outros obedecem a metodologias de
análise muito diferentes, que no caso irlandês têm ainda a oportunidade de
comparação com os escoceses, com os galeses e outros grupos britânicos menores
como os maneses e córnicos.
No caso da literatura monástica irlandesa muito há a explorar e interpretar
para conhecer os druidas; mas também não é impossível que algum dia se encontrem
livros por eles redigidos, pois diversos escritos testemunham essa existência,
desde as biografias de Patrício até um certo Ético de Ístria que diz Ter
consultado as
bibliotecas da Hibérnia.
Quanto à leitura das fontes gregas e romanas
também esta não se esgotou: a lista completa dos textos não é fácil de
encontrar, pois cada comentador acrescenta nomes a essa lista, e os originais
sobre os quais os clássico se basearam - Possidônio, Timageste, o Mago de
Aristóteles – ainda não foram encontrados, além de que há sempre novas
interpretações em função do contexto,
como vimos a propósito da divergência entre Ellis e Kendrick sobre a queda
de prestígio dos druidas.
Em resumo, o estudo dos druidas não só não acabou como há muito o que se
dizer sobre eles – porém cada vez com mais cautela e método.
Bibliografia
Obras clássicas
AMMIANUS MARCELLINUS. The Later Roman Empire. Trad. Walter Hamilton.
Londres, Penguin, 1986.
CLEMENT OF ALEXANDRIA. The Stromata, or Miscellanies. Em Ante-Nicene
Fathers, vol. 2 , ed. Roberts, Alexander & Donaldson, James. Peabody,
Hendrickson, , 1995 (1885).
DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad.
Mário da Gama Kury. Brasília, UnB, 1987, 2 ª ed (1997)
HIPPOLYTUS. The Refutation of All Heresies. Trad. J. H. Mac Mahon em
Ante-nicene Fathers, vol. 5, ed. Roberts, Alexander & Donaldson, James.
Peabody, Hendrickson, 1995 (1886)
JÚLIO CÉSAR. Comentários sobre a Guerra Gálica (De Bello Gallico). Trad.
Francisco Sotero dos Reis. Estudo de Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro,
Tecnoprint, sd.
Nota: quase todos os autores clássicos encontram-se em KENDRICK 212-221
(idioma original) e 73-103 (tradução e interpretação) Comentários
ELLIS, Peter Berresford. Druidas. El Espíritu del mundo celta. Trad. Javier
Alonso López. Madrid, Oberon, 2001
JUBAINVILLE, Henri-Marie D` Arbois. Os Druidas. Os Deuses Celtas com Formas
de Animais. Trad. Julia Vidili, coord. Eduardo Carvalho Monteiro. São Paulo,
Madras, 2003 (1905).
KENDRICK, T. D. The Druids. Londres, Random House, 1996 (1927).
MARKALE, Jean. Le Druidisme. Paris, Payot, 1994 , nova edição. Consulta
geral
GREEN, Miranda. The Gods of the Celts. Godalming, Bramley Books,
1986.
GUYONVARC' H. Christian J. .& ROUX , Françoise Le. La civilisation
celtique. Paris, Payot, 1995 (1990)
HUBY, José. Christus. História das religiões. Trad. Antônio Pinto de
Carvalho. São Paulo, Ed. Saraiva, 1956. Vol. II, cap.5: " A religião dos
celtas".
LEHANE, Brendan. Early Celtic Christianity. Nova Iorque, Barnes &
Noble, 1993 (1968).
MAC CANA, Proinsias. Celtic Mythology. Nova Iorque, Barnes & Noble,
1996 (1968)
MARKALE, Jean. Le Christianisme Celtique et ses survivances populaires.
Paris, Imago, 1983.
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