domingo, 14 de fevereiro de 2016

                   
              O individuo e a coletividade

O caminho , áspero e poeirento , levava a uma cidade situada embaixo. Restavam umas poucas arvores esparsas, na encosta, pois a maioria delas havia sido cortada para lenha e era necessário subir uma certa altura para se achar uma boa sombra. No alto do monte já não se encontravam árvores atrofiadas e mutiladas pelo homem ; lá elas cresciam livremente , até alcançarem sua  altura completa, e tinham  galhos grossos e folhagem normal. 
Ás vezes cortavam-lhes um galho , para as cabras comerem as folhas ,e esse galho, depois de desfolhado , era reduzido a lenha. O mato já era muito escasso nas partes mais baixas, de modo que a devastação ia alcançando cada vez mais para o alto; as chuvas já não eram tão abundantes como outrora ; a população crescia e o povo precisava viver. Padecia-se fome , e a cada um era tão indiferente viver como morrer. Não se viam nas cercanias animais selvagens, que deviam ter-se retirado para os pontos mais altos. Havia algumas aves a mariscar entre as moitas, mas até estas pareciam depauperadas e tinham penas quebradas. Um gaio preto e branco gritava muito excitado e rouco, saltando de galho em galho , numa arvore solitária.

Começava a fazer calor e a tarde ia ser muito quente. Não chovia suficientemente havia anos. A terra estava torrada e fendida, as poucas árvores cobertas de uma poeira marrom, e de manhã não havia sequer orvalho . O sol dardejava impedioso, dia após dia, messes a fio , e a duvidosa estação das chuvas ainda estava muito longe. Algumas cabras subiam o monte , guardadas por um menino, que se mostrou muito espantado por achar gente ali; mas não sorriu , e com ar muito grave lá se foi , atrás das cabras. Era um sítio solitário, aquele , e sobre ele se abatia o silencio do calor que vinha chegando. Duas mulheres vieram descendo pelo atalho  com feixes à cabeça. Uma era velha e a outra muito nova ainda. As cargas que transportavam pareciam muito pesadas. Cada uma delas equilibrava na cabeça , protegida por uma rodilha de pano, um longo molho de ramos secos atado com cipós verdes , o qual segurava com uma das mãos . Seus corpos gingavam , desembaraçados, ao descerem a ladeira, a passos ligeiros . Nenhum calçado tinham , embora fosse áspero o caminho. Os pés pareciam achar o próprio caminho, pois as mulheres nunca olhavam para o chão . Seguiam erectas , a cabeça erguida , os olhos congestionados perdidos na distancia . Eram muito magras , com as costelas à mostra, e a mulher mais velha tinha os cabelos emaranhados e sujos . Os cabelos da moça deviam ter sido untados e penteados recentemente, pois ainda se notavam  algumas adeixas reluzentes; também ela se mostrava esgotada , cansada. Não devia fazer muito tempo , ela ainda cantava e brincava com as outras crianças, mas agora tudo isso estava acabado. Sua vida agora era apanhar lenha nos montes e assim havia de ser até morrer, com uma pausa, de tempos a tempos , para parir um filho.

Fomo-nos todos, ladeira abaixo. A várias milhas de distancia achava-se a pequena cidade provinciana onde as mulheres iam vender a sua lenha por uma insignificância, só para começarem tudo de novo no dia seguinte. Conversavam , com longos intervalos de silencio . Em dado momento, a moça disse para a mãe que estava com fome , ao que a velha respondeu que ali todos nasciam com fome, viviam com fome e morriam com fome; era a sina  de todos eles . Isso era a expressão da verdade , mas não se lhe notava na voz nem censura , nem ressentimento , nem esperança. Continuamos descendo por aquele caminho pedregoso . Não caminhava atrás delas um "observador" , a ouvi-las e a compadecer-se delas. Ele não se tornara parte delas por amor e piedade ; ele era elas ; deixara de existir e elas existiam . Não eram os estranhos que ele encontrara lá em cima; eram ele próprio .. Dele eram as mãos que seguravam os feixes. E o suor, a exaustão , o cheiro , a fome , não eram delas, para serem compartilhados e lamentados. O tempo  e o espaço tinham deixado de existir . Não havia pensamentos em nossas cabeças, cansadas demais para pensar; e se algum pensamento surgia, era o de vender a lenha , comer, descansar , e começar de novo. Os pés que pisavam as pedras do caminho , não doíam , nem doía a cabeça ao sol. Só dois de nós descíamos aquele morro familiar, parando na fonte , onde bebemos como de costume, e atravessando o leito seco de um córrego de que nos lembrávamos.





Interrogante:        Não sei exatamente como formular esta pergunta mas tenho o forte sentimento de que as relações entre o individuo e a coletividade   ---   duas entidades opostas    ----   têm sido, até hoje , um longo desfile de males . A história do mundo , do pensamento , da civilização é , afinal de contas , a história das relações entre essas duas entidades opostas. Em toda as sociedades , o individuo é mais ou menos suprimido; ele tem de obedecer e adaptar-se ao padrão que os teóricos determinaram. O individuo está sempre tentando libertar-se desses padrões , e o resultado é uma batalha continua entre ambas as entidades . As religiões falam da alma individual como coisa separada da alma coletiva . Põem em relevo o individuo. Na moderna sociedade   ---   que se tornou tão mecânica e padronizada , e coletivamente atuante    ---   o individuo   anda à procura de sua própria identidade, a indagar o que é ele , a afirmar-se . A luta nunca leva a parte alguma. O que pergunto é : Que é que está errado em tudo isso?

Krishnamurti:        A unica coisa que realmente importa é que, no viver, haja uma ação proveniente da bondade , do amor e da inteligencia. A bondade é individual ou coletiva, o amor pessoal ou impessoal, a inteligencia  vossa , minha ou de outro ? Se é vossa ou minha , nesse caso não é inteligencia , nem amor , nem bondade.. Se a bondade é uma coisa relacionada com o individuo ou com a coletividade, conforme a preferencia ou o julgamento pessoal de cada um , então já não é bondade. A bondade não se encontra no quintal do do individuo, nem no vasto campo da coletividade; a bondade só floresce livre de ambos. Quando há essa bondade, esse amor e essa inteligencia , a ação não tem então referencia ao individuo ou à coletividade. Como nos falta a bondade, dividimos o mundo em indivíduos e coletividade, dividindo ainda a coletividade em inúmeros grupos, conforme a religião, a nacionalidade e a classe. Depois de criarmos essas divisões tentamos promover a união mediante a formação de novos grupos que, por sua vez , são separados de outros grupos. Supõem-se  que as grandes religiões existem para promover a fraternidade humana; entretanto , na realidade , a impedem .. Estamos sempre tentando reformar o que já se acha corrompido. Não erradicamos a corrupção fundamentalmente, mas tratamos , simplesmente , de reajusta-la.

Interrogante:         Quereis dizer que não devemos desperdiçar tempo em intermináveis especulações sobre o individuo e a coletividade, ou em  provar. que são entidades diferentes ou idênticas? Quereis dizer que só a bondade , o amor e inteligencia são importantes e se encontram fora da esfera do individuo ou da coletividade?

Krishnamurti:        Exatamente.

Interrogante:         A verdadeira questão parece ser, então: Como podem o amor , a bondade e a inteligencia atuar no viver de cada dia?

Krishnamurti:       Se atuam , então a questão do individuo e da coletividade é acadêmica.

Interrogante:         Como podem atuar ?

Krishnamurti         Só podem atuar no estado de relação. Toda existência é relação. O principal , portanto, é nos tornarmos cônscios de nossas relações com todas as coisas e pessoas e vermos como , nessas relações , o "eu" nasce e atua .. Esse "eu" tanto é coletivo como individual. É o "eu" que atua, coletivamente ou individualmente ; o eu que cria o céu e o inferno. Estar cônscio dele é compreende-lo. E a compreensão dele é o seu fim . Seu findar é bondade, amor e inteligencia..




Extraído dos livro  - A Luz que não se Apaga  ICK  e  Reflexões Sobre a Vida  - Cultrix   - ambos de J. 

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