Quase morte, parte 1
A morte é para alguns o cessar da consciência, para outros uma passagem para outra dimensão da realidade, e para muitos o fim da vida orgânica.
O fim de todos os milagres
Em seu conto “O Imortal”, o mestre das palavras Jorge Luis Borges narra o encontro ficcional com um povo de seres imortais:
“A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por dissolver-se como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do inditoso. Entre os Imortais, ao contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a vertigem. Não há coisa que não esteja como que perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é preciosamente precário. O elegíaco, o grave, o cerimonioso não vigoram para os Imortais.”
Certamente a morte é um paradoxo – muitos de nós a abominam, e fogem do olhar direto ao assunto como se ele fosse uma medusa prestes a lhes petrificar; entretanto, é impossível estar vivo sem estar morrendo. A morte dos organismos humanos é uma questão de tempo, assim como a vida é também uma questão de viver no tempo que nos é dado.
Biologicamente falando, a morte é um processo que perdura por toda nossa vida. Muitas células individuais vivem por apenas pouco tempo e a maior parte das células de um organismo são continuamente substituídas por novas células. Ao fim de certo número de divisões (mortes) celulares, não é mais possível ao nosso organismo substituí-las, e então chegamos ao envelhecimento avançado e eventualmente a falência de algum órgão vital para a atividade de nosso cérebro – eis a morte da matéria. Se tudo o que somos é matéria, este é o fim, o sonho sem volta, o sonho sem sonho algum...
Entretanto, estranho de se pensar, se tudo o que somos é matéria, o que diabos a consciência faz para que possamos permanecer quase sempre os mesmos, enquanto praticamente todas as células de nosso corpo morrem e se renovam continuamente ao longo da vida? Obviamente que para respondermos essa pergunta, falta-nos um maior entendimento do que forma o processo de consciência.
Até lá, se nos atermos somente ao que a ciência já é capaz de explicar, podemos apenas afirmar que a consciência é como uma lâmpada que se mantém em funcionamento enquanto o corpo é capaz de lhe suprir com energia. Através de reações químicas nos mantemos conscientes e existe este baile imensurável e misterioso de eletricidade pelo cérebro... Apesar de já sabermos aproximadamente sobre os comandos mais simples, como mover um braço ou proteger os olhos, falta-nos à compreensão do que quer que em nossa consciência determina as decisões ou respostas morais, interpretativas, poéticas, espirituais...
Para o materialismo nós somos mais ou menos como um rádio que gera as suas própria ondas. Se o rádio para de funcionar, as ondas também cessam.
Para muitos esta já é uma explicação suficiente. Estão certos de que a consciência é apenas o resultado do agitar de partículas pelo cérebro, e que esta não pode existir sem ele... Apesar de nunca termos achado a verdadeira “usina” de todos esses pensamentos que os homens tiveram desde a pré-história, para muitos basta saber que ele se origina no cérebro e que não pode perdurar sem ele. Segundo o filósofo Daniel Dennet, a própria subjetividade é uma ilusão – tudo o que fazemos é pré-determinado por esse misterioso agitar de partículas no cérebro. Não existe, em realidade, algo como vontade ou responsabilidade. Tudo que existe é o baile da matéria, a dança da poeira de estrelas longínquas que nos parece com algo que chamamos de vida. Mas esta é apenas uma doce ilusão com os dias já contados desde nosso nascimento.
Para quem é realmente materialista, fica muito complicado discordar de Dennet...
Para quem é, no mínimo, agnóstico em relação ao assunto, ficam os caminhos abertos para a investigação, as ondas a serem captadas e decodificadas...
Carl Sagan dizia que viver na memória e nos pensamentos daqueles que nos admiram e nos amam é efetivamente viver para sempre. Sagan tinha razão, ainda que a morte seja o sonho sem sonho, ainda viveremos na memória dos que sentirão saudades, e mesmo que a raça humana se extinga ou o sol cesse de nos iluminar, nossos átomos – aqueles mesmos que emprestamos das estrelas distantes – ainda vão flutuar por esse Cosmos infinito por muito, muito tempo.
E, se nos parece algo inútil adquirir conhecimento e experiência de vida, se no fim temos quem sabe pouco mais de um século (com sorte) para tentar chegar a alguma conclusão, e sabemos perfeitamente que não chegaremos a nenhuma em definitivo; ao menos nos resta o consolo de perceber que o que importa é o caminho, o meio, o trilhar, e não o fim. O fim será sempre a morte, é importante nos atermos a vida – esta não cessará, mesmo que não estejamos mais aqui para admirar sua festa.
Se a vida é um conjunto de milagres, a morte é o fim de todos os milagres.
Porém, assim como o dia insiste em suceder a noite, assim como a morte é parte vital do ciclo de espécies que evoluíram para possibilitar que o homo sapiens despertasse do longo sono da animalidade inconsciente, é possível que o sono final não seja uma noite destituída de sonhos... Em realidade, não são apenas as religiões que falam em vida após a morte. A ciência também parece ter algo a nos dizer – e quem traz as informações são precisamente aqueles que experimentaram a morte, ou a quase morte.
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